Cinco Segundos - Capítulo IX: Tempo para Viver, Tempo para Morrer
Ali, agora, tudo parecia já distante e esbatido na memória. Mary-Ann permanecia adormecida ao seu lado na cama fofa daquele quarto da pensão Início do Tempo, na parte oeste de Bluebank. Com a ajuda preciosa dos amigos, ele e o Massa Lenta tinham conseguido recuperar as suas coisas dos lares agora interditos. Convencera Mary-Ann a segui-lo na viagem de regresso à Terra e viviam juntos desde então, um escasso par de semanas transformado em jardim das delícias.
Tinham eliminado todas as velhas carcaças anteriormente envolvidas na conspiração com a mesma limpeza com que ele liquidara os seus opositores alguns dias antes. O cartão negro de Arif Kalter tivera um papel fundamental na sua fuga da Lua. Provavelmente não teriam escapado sem ele.
Agora, depois de tudo terminado, pudera voltar à sua vida quotidiana e aos delitos de todos os dias, ao jogo do gato e do rato com os grabbers e ao ar poluído da megalópole que era o mundo. Tudo normal no paraíso...
- Está muito bom, Mary.
- Como vês, além de cocktails também sei preparar pequenos almoços. – o som da campainha interrompeu a conversa.
- Sim!? – inquiriu Mary-Ann. A voz metálica que se ouviu através do intercomunicador já era conhecida de Rickert.
- Queria falar com o Mickie.
Mary-Ann voltou-se para Rickert interrogando-o com o olhar.
- Abre, eu sei quem é.
Vinnie Smolensk entrou de rompante no quarto-apartamento e abraçou Rickert com força.
- Oh Mickie, Mickie!... Parece que foi há tanto tempo! – o cabelo dela tinha agora três tons de vermelho que trocavam de posição rapidamente e entonteciam quem a olhava com mais atenção.
- Como é que me descobriste aqui? Quem te disse?
- Foi o Massa Lenta, ele precisa de falar contigo.
- Porque não veio ele?
- Está com problemas, por isso mandou-me cá a mim. Precisa da tua ajuda.
- O que é que te aconteceu naquela noite?
- O bruto que entrou no nosso quarto bateu-me com força. Acordei no dia seguinte sem saber onde estava. Depois levaram-me para a costa oeste e largaram-me lá sem dinheiro nenhum; só agora consegui voltar para casa. Vens ou não?
Havia qualquer coisa que não fazia sentido, mas Rickert não conseguiu descobrir o quê. A necessidade que o Massa Lenta tinha do seu auxílio levou-o a deixar as suas cogitações para mais tarde.
- Vamos. – disse para Vinnie – Até mais tarde, querida.
- Eu tenho ali um jetcar.
- Um jetcar! Subiste na vida.
- Foi um amigo que o alugou, não é meu.
- De qualquer maneira... Para onde vamos?
- Flatland. – respondeu ela num tom seco enquanto colocava os óculos espelhados Hu-Yang, modelo Paz Celestial, cinco segundos atrasados do resto do mundo.
O sítio para onde se dirigiram era num dos níveis superiores de Flatland, onde o sol sujo ainda chegava com alguma eficácia.
- É aqui. – disse Vinnie enquanto lhe dava o braço – Lembras-te do que fizemos naquela noite?
Rickert ia sorrir-se mas não teve tempo. Sentiu uma picada no braço e o mundo começou a rodar à volta dele. Ainda viu a porta metálica a abrir-se antes de ficar tudo negro.
Sentiu as cordas que o prendiam primeiro que tudo. Depois abriu os olhos e viu a pequena assembleia à sua frente. Doc Abraham Townsend cofiando as barbas, Vinnie sentada numa cadeira e com o olhar ausente, Arif Kalter a sorrir-se, Kirl Takashi-Coltrane com um olhar provocante, e Colbert MacMahoney com a eterna beata apagada no canto da boca. O outro não o conhecia. Foi Arif quem falou:
- Embora você conheça quase toda a gente que aqui se encontra não serão de todo descabidas algumas, digamos, re-apresentações. Ali na ponta decerto reconheceu o Doutor Abe Townsend que elaborou o programa de condicionamento e lhe apagou a memória. Ah sim, e depois recuperou-lha de novo! Depois temos Vinnie Smolensk, pobre vítima inocente das programações do Doutor Abraham... Com a sua capacidade de detectar as situações de perigo iminente tínhamos de utilizar alguém da sua confiança para o capturar. Aqui à minha esquerda está a Kay, que fez um trabalho excelente de direccionamento das suas acções, e também outro seu conhecido, Colbert. Um operacional de muito valor, como sabe. O mexicano é o Emílio. Lembra-se dele, o vizinho curioso? Só falta aqui o Jikx porque tem muito trabalho no bar.
Rickert tentou falar mas os músculos dos seus maxilares não obedeceram. Tinham-lhe ministrado qualquer droga selectiva.
- Como desta vez o apanhámos para valer, vou contar-lhe o fim da história que iniciei na Lua. Esta é uma versão ligeiramente diferente... O nome da operação era Vaga de Maré ou, se preferir, Tidal Wave. Você era a chave de tudo, as suas reacções determinariam o curso da operação. Felizmente você reagiu sempre de acordo com as previsões. Sei o que está a pensar: então e as mortes de Lucius e de Ariel? Não, senhor Rickert, não foram fruto do acaso; esses dois senhores convinham-nos mais mortos do que vivos, por isso foram eliminados por si. Ah, antes que me esqueça: a Mara Simpson também foi ligeiramente condicionada; tinha de haver testemunhas da cena do beco. Qual o objectivo de tudo isto, perguntar-se-á? Nada mais simples: poder! Poder quase ilimitado para a Aumann-Yoko. Nós já dominávamos quase por completo a Administração. Os velhos que você matou há duas semanas eram nossos aliados. O que eu lhe contei em Moonkrater era também o que eles pensavam ser a verdade, a parte que lhes faltava saber era a de que a Aumann-Yoko planeara também a sua eliminação. Um golpe inteligente, não acha? Eliminámos tanto os que criticavam a nossa influência na Administração como aqueles que eram nossos aliados. Agora nós somos a Administração. Fim da história. Deve interrogar-se sobre o que lhe vai acontecer, suponho. Sabe senhor Rickert, você tem um talento muito especial e que nós utilizámos com prazer; acontece que ainda não descobrimos o que o provoca e, sabe... nós somos muito curiosos.
Arif Kalter começou a rir. Todos começaram a rir excepto Vinnie, que continuava sentada e de rosto impassível.
A última imagem que viu foi a de Colbert a aproximar-se dele.
A última sensação que teve foi a de uma leve picada no pescoço.
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